A síndrome de Cushing consiste em uma constelação de anormalidades clínicas causadas por concentrações cronicamente elevadas de cortisol ou corticoides relacionados. A doença de Cushing é a síndrome de Cushing que resulta de excesso de produção de ACTH, habitualmente secundária a adenoma hipofisário. Os sinais e sintomas típicos incluem face em lua cheia e obesidade do tronco, com pernas e braços finos. O diagnóstico é feito pela história de utilização de corticoides ou pelas concentrações elevadas de cortisol sérico. O tratamento depende da causa.
Etiologia
A hiperfunção do córtex adrenal pode ser dependente ou independente de ACTH.
A hiperfunção dependente de ACTH pode resultar de
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Hipersecreção de ACTH pela hipófise.
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Secreção de ACTH por um tumor não hipofisário, como carcinoma de pequenas células do pulmão ou tumor carcinoide (produção ectópica de ACTH).
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Administração de ACTH exógeno.
A hiperfunção independente de ACTH geralmente resulta da administração terapêutica de corticoides ou de adenomas ou carcinomas adrenais. Causas raras incluem displasia primária nodular pigmentada das adrenais (habitualmente em adolescentes) e displasia macronodular (em pacientes mais velhos).
A denominação síndrome de Cushing denota o quadro clínico resultante do excesso de cortisol resultante de qualquer causa, ao passo que doença de Cushing refere-se à hiperfunção do córtex adrenal em decorrência do excesso de ACTH hipofisário. Pacientes com doença de Cushing habitualmente apresentam um pequeno adenoma na hipófise.
Sinais e sintomas
As manifestações clínicas incluem fácies em lua cheia, com aspecto pletórico (ver Prancha 22), obesidade do tronco com deposição de gordura proeminente na região supraclavicular e na porção cervical dorsal (gibosidade) e, habitualmente, extremidades distais e dedos muito finos. Há desgaste muscular e fraqueza. A pele é fina e atrófica, com má cicatrização de ferimentos e facilidade para formar hematomas. Estrias violáceas podem surgir no abdome. Hipertensão, cálculos renais, osteoporose, intolerância à glicose, diminuição da resistência a infecções e distúrbios mentais são comuns. A cessação do crescimento linear é característica em crianças. Mulheres geralmente apresentam irregularidades menstruais. Em mulheres portadoras de tumores adrenais, o aumento da produção de andrógenos pode causar hipertricose, recesso temporal e outros sinais de virilismo.
Diagnóstico
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Teste de supressão com dexametasona
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Concentração de cortisol livre urinário
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Concentração de ACTH; se detectável, teste de estímulo
A suspeita diagnóstica habitualmente baseia-se em sinais e sintomas clínicos característicos. Confirmação (e investigação da causa subjacente) geralmente requer exames hormonais e de imagem.
Em alguns centros, os exames iniciam-se com a medida do cortisol urinário livre, o me- lhor ensaio de excreção urinária (normal, de 20 a 100 μg/24 h [55,2 a 276 nmol/24 h]). O cortisol urinário livre é elevado (> 120 μg/24 h [> 331 nmol/24 h]) em quase todos os pacientes com síndrome de Cushing. Entretanto, vários pacientes com elevações de cortisol urinário livre entre 100 e 150 μg/24 h (276 e 414 nmol/24 h) apresentam obesidade, depressão ou síndrome de ovários policísticos, mas não síndrome de Cushing. Um paciente com suspeita de síndrome de Cushing, com concentração muito elevada de cortisol urinário livre (mais de quatro vezes o limite superior da normalidade), quase certamente apresenta síndrome de Cushing. Duas a três coletas normais virtualmente excluem o diagnóstico. Concentrações discretamente elevadas em geral exigem mais investigações. Uma base de referência matinal de cortisol sérico (p. ex., 9 h) também deve ser mensurada.
Uma abordagem alternativa para a investigação vale-se do teste de dexametasona, em que 1, 1,5 ou 2 mg de dexametasona são administrados, VO, entre 23 e 0 h, e o cortisol plasmático é medido das 8 às 9 h da manhã seguinte. Na maioria dos pacientes normais, essa droga suprime o cortisol plasmático matinal para menos de 1,8 μg/ml (≤ 50 nmol/l), ao passo que os pacientes com síndrome de Cushing virtualmente sempre apresentam concentração mais elevada. Um teste mais específico, porém igualmente sensível, é a administração de 0,5 mg de dexametasona, VO, a cada 6 h, por 2 dias (baixa dose). Em geral, uma incapacidade evidente de suprimir as concentrações de cortisol em resposta à baixa dose de dexametasona estabelece o diagnóstico.
Se os resultados desses exames forem indeterminados, o paciente é hospitalizado para medir o cortisol sérico à meia-noite, o que apresenta maior possibilidade de ser conclusivo. Alternativamente, amostras de cortisol salivar podem ser coletadas e armazenadas em um refrigerador em casa. O cortisol normalmente tem limites entre 5 e 25 µg/dl (138 a 690 nmol/l) no início da manhã (6 a 8 h) e diminui gradualmente para menos de 1,8 μg/dl (< 50 nmol/l) à meia-noite. Pacientes com síndrome de Cushing ocasionalmente têm cortisol normal pela manhã, mas não apresentam declínio diurno da produção de cortisol e, assim, as concentrações de cortisol à meia-noite estão acima dos valores normais e a produção total de cortisol em 24 h está elevada. O cortisol plasmático pode estar falsamente aumentado em pacientes com elevações congênitas de globulina transportadora de corticoides ou com tratamento com estrógenos, mas a variação diurna é normal nesses pacientes.
As concentrações de ACTH são medidas para determinar a causa da síndrome de Cushing. Concentrações indetectáveis, tanto de modo basal quanto particularmente em resposta ao CRH, sugerem causa adrenal primária. Concentrações elevadas sugerem causa hipofisária. Se as concentrações de ACTH forem detectáveis (síndrome de Cushing dependente de ACTH), os testes provocativos auxiliam a diferenciar a doença de Cushing da secreção ectópica de ACTH, que é mais rara. Em resposta a altas doses de dexametasona (2 mg, VO, a cada 6 h, por 48 h), o cortisol sérico às 9 h cai mais de 50% na maioria dos pacientes com doença de Cushing, mas raramente naqueles com síndrome ectópica de produção de ACTH. Inversamente, a concentração de ACTH se eleva mais de 50% e a de cortisol, mais de 20%, em resposta à sequência humana ou ovina de CRH (100 µg, IV, ou 1 µg/kg, IV) na maioria dos pacientes com doença de Cushing, mas raramente nos pacientes com síndrome de secreção ectópica de ACTH (ver Testes diagnósticos para síndrome de Cushing). Uma abordagem alternativa para localização – que é mais precisa, porém mais invasiva – é o cateterismo de ambas as veias petrosas (que drenam a hipófise) e a medição do ACTH nessas veias 5 min após uma injeção em bolo de CRH, 100 µg ou 1 µg/kg. Uma relação centro/periferia superior a 3 virtualmente exclui a síndrome de secreção ectópica de ACTH, ao passo que uma relação inferior a 3 sugere a necessidade de buscar essa fonte.
Exames de imagem da hipófise são realizados se as concentrações de ACTH e os testes de estímulo sugerirem causa hipofisária; ressonância nuclear magnética usando gadolínio como contraste é mais precisa, mas alguns microadenomas são visíveis na tomografia computadorizada. Se os exames sugerirem uma causa não hipofisária, os exames de imagem incluem tomografia computadorizada de alta resolução de tórax, pâncreas e adrenais; cintilografia com octreotídio como radiomarcador; e tomografia com emissão de prótons.
Em crianças com doença de Cushing, os tumores hipofisários são muito pequenos e podem não ser detectados por ressonância nuclear magnética. Amostras do seio petroso são particularmente úteis nessa situação. É preferível a utilização da ressonância nuclear magnética à tomografia computadorizada em mulheres grávidas, para evitar a exposição fetal à radiação.
Tratamento
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Metirapona ou cetoconazol
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Cirurgia ou radioterapia para remoção de tumores
Inicialmente, a condição geral do paciente deve ser mantida por uma dieta rica em proteínas e administração adequada de potássio. Se as manifestações clínicas forem intensas, pode ser razoável bloquear a secreção de corticoides com metirapona (250 mg a 1 g, 3 vezes/dia) ou cetoconazol (400 mg, VO, 1 vez/dia), aumentando até a dose máxima de 400 mg, 3 vezes/dia. O cetoconazol está mais prontamente disponível, mas o início de ação é mais lento e, às vezes, é hepatotóxico.
Os tumores hipofisários que produzem excesso de ACTH são removidos cirurgicamente ou extirpados com radiação. Se a imagem não identificar tumor, mas houver uma fonte hipofisária provável, pode-se tentar realizar hipofisectomia total, em particular em pacientes idosos. Pacientes mais jovens recebem radioterapia de supervoltagem na hipófise, com 45 Gy. A melhora costuma ocorrer em menos de 1 ano. Entretanto, em crianças, a irradiação pode reduzir a secreção de GH e, ocasionalmente, causar puberdade precoce. Em centros especializados, a radiação com raios de partículas pesadas, fornecendo cerca de 100 Gy, costuma ser bem-sucedida, bem como o tratamento com raio único focalizado administrado em dose única (radiocirurgia). A resposta à irradiação ocasionalmente requer vários anos, mas é mais rápida em crianças.
Estudos sugerem que casos leves de doença persistente ou recorrente podem se beneficiar do análogo de somatostatina pasireotídeo. No entanto, a hiperglicemia é um efeito adverso significativo, e essa droga ainda não está disponível comercialmente.
A adrenalectomia bilateral é reservada a pacientes com hiperadrenocorticismo hipofisário que não respondem à exploração da hipófise (com possível adenomectomia) nem à radioterapia. A adrenalectomia torna necessária a reposição de corticoides por toda a vida.
Tumores adrenocorticais são removidos cirurgicamente. Os pacientes devem receber cortisol durante a cirurgia e no período pós-operatório, em razão da supressão e atrofia do córtex adrenal não tumoral. Adenomas benignos podem ser removidos por via laparoscópica. Na hiperplasia adrenal multinodular, a adrenalectomia bilateral pode ser necessária. Mesmo após adrenalectomia total presumida, ocorre recrescimento funcional em alguns pacientes.
A síndrome de produção de ACTH ectópico é tratada pela remoção do tumor não hipofisário que produz ACTH. Entretanto, em alguns casos, o tumor está disseminado e não pode ser removido. Os inibidores da adrenal, como metirapona (500 mg, VO, 3 vezes/dia, até um total de 6 g/dia) ou mitotano (0,5 g, VO, 1 vez/dia, aumentando até o máximo de 3 a 4 g/dia) em geral controlam os distúrbios metabólicos graves (p. ex., hipopotassemia). Quando se utiliza mitotano, grandes doses de hidrocortisona ou dexametasona podem ser necessárias. As médias da produção de cortisol podem não ser confiáveis e pode ocorrer hipercolesterolemia grave. Cetoconazol (400 a 1.200 mg, VO, 1 vez/dia) também bloqueia a síntese de corticoides, apesar de poder causar toxicidade hepática e sintomas de Addison. Alternativamente, os receptores de corticoides podem ser bloqueados com mifepristona (RU 486). A mifepristona aumenta o cortisol plasmático, mas bloqueia os efeitos dos corticoides. Às vezes, tumores produtores de ACTH respondem a análogos de somatostatina de longa ação, embora a administração por mais de 2 anos necessite de seguimento rigoroso em vista da possibilidade de desenvolvimento de gastrite leve, cálculos biliares, colangites, icterícia e má absorção.
Síndrome de Nelson
A síndrome de Nelson ocorre quando, após adrenalectomia bilateral, a hipófise continua a se expandir, causando grande aumento da secreção de ACTH e seus precursores, provocando intensa hiperpigmentação. Ocorre em até 50% dos pacientes submetidos à adrenalectomia. O risco provavelmente é reduzido se o paciente se submeter a radioterapia da hipófise. Embora a radioterapia possa deter o crescimento contínuo da hipófise, vários pacientes também necessitam de hipofisectomia. As indicações para hipofisectomia são as mesmas de qualquer tumor hipofisário – aumento de tamanho de forma que o tumor invada as estruturas adjacentes, causando defeitos de campos visuais, pressão sobre o hipotálamo ou outras complicações. A radioterapia de rotina em geral se realiza após a hipofisectomia, se não tiver sido feita antes. A radioterapia pode ser postergada se não houver lesão óbvia. Pode-se administrar radiocirurgia ou radioterapia focalizada em dose única, quando a radioterapia externa padrão já tiver sido feita, desde que a lesão esteja a uma distância razoável do nervo e quiasma ópticos.
Pontos-chave
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O diagnóstico geralmente é feito por elevados níveis de cortisol sérico ou salivar noturnos ou cortisol livre na urina de 24 h, e teste de supressão de dexametasona .
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Causas da hipófise são distintas de causas não hipofisárias por níveis de ACTH.
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Testes de imagem são, então, feitos para identificar qualquer tumor causador.
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Os tumores são geralmente tratados cirurgicamente ou com radioterapia.
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Pode-se administrar metirapona ou cetoconazol para suprimir a secreção de cortisol antes do tratamento definitivo.
Fonte: Manual MSD